Veneza, a cidade flutuante (parte I)

Ainda a propósito de Itália, partilho com os estimados leitores deste blog alguns instantâneos que recolhi numa rápida visita à mítica cidade que lentamente se vai afundando no lodo de uma laguna. Rápida porque os propósitos da viagem eram outros, claro, e não pelo receio de ser submergida, ainda que a ideia de estar rodeada por uma beleza ameaçada no tempo seja porventura desconcertante. Ouso enriquecer as imagens com um pouco de História, dada a singularidade com que esta foi escrita nesse local onde a terra e as águas do mar Adriático se confundem e explicam toda a sua riqueza.


Quando no séc.V d.C. os bárbaros invadiram terras romanas, as populações atemorizadas fugiram para a laguna, refugiando-se nas suas ilhas. Ali começaram a construir casas sobre estacas enterradas no lodo da laguna, que se revelaram resistentes (tendo este método ainda sido usado até ao século XVII). Isolados nas ilhas, os povos da laguna cedo perceberam que unindo-se teriam melhores hipóteses de resistir às ofensivas humanas, bem como às do mar e, nesse sentido, construíram pontes e assorearam canais para diminuir as distâncias e aumentar a terra firme. Viviam como negociantes do que pescavam e do sal que recolhiam do mar. Na época o sal era tão valioso que até então os próprios legionários romanos eram pagos com esse cristal - de onde deriva o termo “salário”. Os bárbaros haviam esquecido os pescadores da laguna e logo a prosperidade dos seus negócios pôde pagar a sua independência, ao contrário das grandes cidades do império romano que foram tomadas. A tradição diz que a cidade se assumiu formalmente a 25 de Março de 421, ao meio-dia.



Perante a necessidade de haver um dirigente para a nova cidade, criou-se a figura do Dux, termo que mais tarde evoluiu para Dodge. O Dodge era eleito por um processo complexo e, apesar de ocupar um cargo de topo, detendo o controlo sobre a vida quotidiana da população, a sua actividade era constantemente vigiada para que não incorresse em abuso de autoridade - se tal se suspeitasse, poderia muito bem ser condenado à morte! Quem controlava a nobreza era o “Conselho dos dez” e três inquisidores ou “Conselho dos três” que detinham o poder de condenar à morte qualquer cidadão. Outras cidades-estado foram dominadas por um só homem ou por uma família, mas tal nunca ocorreu com Veneza, onde “todos os homens são iguais, mas subordinados a um bem comum”. Veneza foi também apelidada de “República Sereníssima”, pela sua estabilidade política que lhe permitiu uma enorme expansão comercial. Tornou-se no ponto de chegada à Europa da Rota da Seda e nela se cruzaram durante séculos diferentes raças, culturas e religiões, ao mesmo tempo que circulavam a seda, as especiarias e as pedras preciosas. O célebre mercador de Veneza Marco Polo, que terá vivido durante 25 anos na corte mongol no Catai, para onde partiu em 1292, regressou com um impressionante carregamento de rubis, pérolas e esmeraldas que surpreendeu uma cidade habituada ao comércio de luxo. As influências orientais, sobretudo bizantinas, enraizaram-se na cidade, criando um estilo arquitectónico único – o gótico florido. Tais influências, tão óbvias um pouco por toda a cidade, tomam grandes proporções na Basílica de S. Marcos e na ampliação do Palácio dos Dodges.


O apogeu económico de Veneza deu-se no século XV, numa altura em que os venezianos dominavam o Mediterrâneo, mas a partir daí o declínio começou, após a conquista de Constantinopla pelos turcos (1453) e com a chegada de Vasco da Gama à Índia, facto que proporcionou uma via mais rápida e lucrativa de comércio com o Oriente – para bem de Portugal.

A estabilidade política e os mais de 1100 anos de função dos Dodges tiveram fim em 1797, com a conquista da República Sereníssima por Napoleão, que mais tarde cedeu a cidade aos austríacos. Só em finais do século XIX, durante a unificação da península, é que Veneza foi agrupada no actual território de Itália.


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