Dos tempos do "Salta e Pilha".

Silvares (direita) e Ourondo (esquerda) a partir do Cabeço do Pião

Há cerca de 70 anos atrás, Portugal era um país essencialmente rural, no qual grande parte da sua população combatia dois ferozes adversários: o analfabetismo e a pobreza. Eram tempos em que o dia-a-dia era feito de suor, justificado pelo objectivo único de alimentar uma família numerosa e onde os membros desta, mal se livrassem do fardo da escolaridade obrigatória, cedo começavam também a trabalhar. Tempos austeros portanto, nada comparáveis aos de hoje, nos quais ousar criticar o que quer que fosse estava terminantemente fora de questão, sob pena de graves consequências pessoais e familiares. Neste contexto, à população cabia encontrar o engenho necessário para assegurar a sua sobrevivência e foi assim que surgiram “profissões” que ficaram para sempre eternizadas no imaginário colectivo da “periferia” nacional, como o contrabando das rotas transfronteiriças e o…”Salta-e-pilha”.


O “Ouro Negro”

Uma das matérias-primas mais exportadas de então era o volfrâmio (ou tungsténio se preferirem), sendo extremamente procurado devido à sua importância na indústria do armamento e tendo portanto o seu mercado sido potenciado pelas duas Grandes Guerras, principalmente a 2ª, e mais tarde pela Guerra da Coreia.

Aqui pertinho, a região das Minas da Panasqueira fervilhava de actividade, empregando famílias inteiras na exploração do minério de volfrâmio. Havia no entanto outros que trabalhavam por conta própria, à revelia da empresa que detinha a concessão da exploração de volfrâmio, a Beralt. Estes "mineiros" clandestinos operavam pela calada da noite, vasculhando valas e galerias de sondagem abandonadas pela empresa, procurando o precioso minério e jogando com a GNR um verdadeiro jogo do gato e do rato. Eram os mineiros do "Salta e Pilha".


O Cabeço do Pião

O Cabeço do Pião ainda hoje ostenta as marcas da exploração mineira sofrida ao longo dos anos, tanto legal como ilegal, chamando a atenção na paisagem pela sua gigantesca escombreira. Para o Cabeço do Pião convergia muita gente dos arredores, nomeadamente da actual vila de Silvares, das aldeias de São Martinho e da Barroca, entre outras. Curiosamente, se parte da minha família trabalhava para a Beralt, já outra parte dedicava-se ao Salta e Pilha. Foi esse o caso do meu avô materno, de seu nome Abílio Pires Gomes, único dos meus avós que nunca cheguei a conhecer.


Moleiro durante o dia, contrabandista durante a noite

Abílio era o patriarca de um agregado familiar do qual, para além da minha também falecida avó Alexandrina, faziam parte 7 filhos, 2 rapazes e 5 raparigas. Moleiro de profissão (o seu moinho ainda hoje existe na margem esquerda do Zêzere) viu-se, no início dos anos 1940, perante a necessidade de construir uma casa mais condigna para a sua família. O Salta-e-Pilha apresentava-se como a solução mais rentável no imediato. Tinha noção dos riscos: ser preso em flagrante ou sofrer um acidente podia significar deixar a sua família sem a sua principal fonte de rendimento. Ainda assim decidiu arriscar e passou a levar uma vida dupla, trabalhando no seu moinho durante o dia e, mal anoitecia, nas galerias do Cabeço do Pião, às vezes acompanhado pelo seu filho mais novo, ainda criança, e no meio de muitos outros habitantes das redondezas que se espalhavam pelo monte.

Encontrar volfrâmio não era fácil. Para além da força de braços necessária, o minério podia teimar em não se revelar atrás dos veios de quartzo. As noites podiam ser de total frustração, de suor derramado em vão, e não eram poucas essas noites!

As pedras com minério tinham de ser transportadas numa saca até Silvares ou, se fosse preciso começar a trabalhar cedo no moinho, ficaria sob as águas do Zêzere até poderem ser transportadas em segurança para casa.

Abílio e Alexandrina Pires Gomes durante a década de 1970

A separação e lavagem do minério era depois tarefa que cabia à sua esposa que a fazia num alguidar na cave. O minério era então cuidadosamente escondido na salgadeira, sob uma espessa camada de sal, que conservava nacos de carne do último porco que por eles fora criado.

Quando a quantidade guardada já o justificava, Abílio fazia-se ao caminho com aquelas dezenas de quilos às costas, sempre a coberto da noite, em direcção a Sobral de São Miguel, a quase 20km de distância, onde entregava o minério a um receptador. Em troca, recebia umas vezes dinheiro, outras vezes pregos, tijolos ou tábuas que pedia para serem entregues na obra da sua nova casa. Também alimentos eram algo que trazia ou um ocasional doce para as crianças.

A somar a todas as dificuldades, havia sempre o risco de serem surpreendidos pela GNR que por ali rondava a coberto da escuridão, à espreita de um mineiro mais incauto.


Do mergulho nocturno à prisão

Contava Abílio com um fiel e incansável vigilante, sempre atento às movimentações da GNR: rafeiro de raça, leal e abnegado como poucos, o “Manda Vir” fazia jus ao seu nome sempre que desconfiava de um uniforme. Um rosnado ou um latido era quanto bastava para que a fuga dos mineiros se desse pelo acesso oposto da galeria. Quando a ocasião assim o exigia, também punha à prova a resistência do tecido das calças dos guardas.

Foi assim naquela noite em que o aviso não foi audível o suficiente e Abílio foi surpreendido à saída da mina. No entanto a polícia não o conseguiu agarrar. Com o “Manda Vir” a puxar as calças de um guarda e com uma agilidade inata que lhe permitiu libertar-se das mãos da autoridade, Abílio fugiu pela encosta abaixo perseguido pela GNR. Chegado à margem, não hesitou: saltou para a água e atravessou o Zêzere a nado até à outra margem, sempre sob os impropérios da GNR que não se atreveu a segui-lo.

No entanto a polícia foi fechando o cerco. As pegadas e o calçado que Abílio usava, umas modestas alpargatas, foram o mote para que Alexandrina fosse interpelada em plena rua:

-“O teu homem é contrabandista? Diz a verdade!”, ao que a senhora, que sempre se gabou de apenas temer a trovoada, respondeu sem hesitar –“É lá agora…! Ele calça é os mesmos sapatos!”.

À falta de provas, funcionavam as denúncias da vizinhança. Sem precisar de ordens judiciais, a GNR interveio de forma activa em duas ocasiões. Numa, através de uma busca domiciliária onde pouca coisa escapou aos olhos e mãos dos guardas. A salgadeira, por sorte, escapou. Noutra, Abílio foi mesmo preso e levado para os calabouços onde ficou durante alguns meses. Sem confissão e sem provas, acabaria por ser libertado, regressando ao Salta-e-Pilha apenas após algumas semanas. As suficientes para deixar a poeira das suspeitas assentar.


Casa construída, fim do Salta-e-Pilha.

No fim, Abílio Gomes cumpriu o seu objectivo: a construção da nova casa. Seria esse o mote para abandonar o Salta-e-Pilha e voltar a dedicar-se em exclusivo às actividades de moleiro. Ainda voltaria às minas mais tarde, muito mais longe de casa, mas a sorte não o acompanharia desta vez na pesquisa do minério. Fica para a memória um facto admirável: quando começou a construir a nova casa, Abílio guardava na sua antiga casa 5 “contos”. Quando terminou a construção, mantinha ainda esses mesmos 5 “contos”.

A casa, recentemente restaurada e já não na posse da família, ainda hoje continua de pé na Rua do Cimo do Lugar. Imaginarão os transeuntes que por ali passam as histórias com quais foram construídas aquelas paredes?


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