No trilho da Muralha de Adriano - A chegada a Newcastle

Os últimos dias de preparação para a viagem foram de alguma ansiedade. Afinal, iríamos percorrer cerca de 140km a pé noutro país (acabaram por ser mais), por um trilho cujas condições não conhecíamos. Por outro lado, gerir o que deveríamos levar também não foi fácil, sendo certo que teríamos de carregar bagagem para duas semanas às costas.

Não havendo voos directos para Newcastle, a cidade em cujos subúrbios começa o trilho, mais precisamente a 5km a Este do centro, desembarcámos em Edimburgo, na Escócia. Uma vez que o aeroporto se situa fora da cidade, foi necessário apanhar um autocarro para o centro, até à estação de caminho de ferro. Por sorte fomos recebidos por um Sol radioso, bem diferente do que havíamos deixado em Lisboa. 

Após 30 minutos de viagem, num autocarro com bancos em cabedal, rede wireless gratuita e ecrãs que permitem irmos controlando a nossa bagagem no piso inferior, chegámos a Edimburgo. O pouco que vimos no trajecto deixou-nos fascinados. Iríamos depois voltar aqui com mais algum tempo no último dia da nossa estadia.


Chegada à estação central de Newcastle


A viagem de comboio até Newcastle  também foi muito agradável. Foi curioso ver passar um carrinho/bar pelas carruagens, isto se tivermos em conta o nosso serviço Intercidades equivalente que, na linha da Beira Baixa, disponibiliza máquinas de vending avariadas . Também foi curioso verificar o pormenor de os lugares vendidos previamente estarem assinalados, não só com a nota de "Reservado" mas também com a descrição do troço da viagem em que se encontravam reservados. Enquanto isto, pela janela iam desfilando cenários verdes e amarelos, polvilhados aqui e ali de borbotos lanudos pretos ou brancos.


Newcastle!


História, modernidade, comércio e multiculturalidade. Eis Newcastle Upon Tyne.

De há algum tempo a esta parte, vinha alimentando uma certa vontade secreta de viajar até um sítio onde, para além de não conhecer ninguém, não conhecesse a língua local. Cumpri o meu sonho. Cheguei a Newcastle onde o dialecto "geordie" chega a ser incompreensível. Se no caso do diálogo com indivíduos que pedem uns trocos ou um cigarro acaba por ser uma mais valia tremenda, já na utilização dos serviços públicos ou em qualquer pedido de informação ou diálogo de circunstância, é uma severa desvantagem. Que o diga o senhor que, numa estação de metropolitano, teve de repetir 6 vezes a sua interpelação, até que finalmente percebêssemos que nos estava a chamar a atenção para um painel publicitário de cariz bíblico. 

A cidade que apenas conhecemos como Newcastle ou, segundo Jorge Jesus, "Newcasten", chama-se na verdade Newcastle Upon Tyne, literalmente "Castelo Novo sobre o (rio) Tyne". A história da cidade começa com a chegada dos romanos que aqui construíram uma ponte sobre o rio Tyne, a Pons Aelius (assim chamada em homenagem ao imperador Adriano ou Publius Aelius Traianus Hadrianus Augustus para os amigos), e um forte para a guardar, integrado na linha da Muralha de Adriano. Como aconteceu nos outros fortes ao longo da Muralha, o comércio dos indígenas com os legionários levou à formação de uma pequena aldeia (vicus) junto a este forte, que acabou por crescer e prosperar.



Da Pons Aelius nada resta mas na zona central de Newcastle existem nada mais nada menos que 7 pontes sobre o Tyne, como a Tyne Bridge inaugurada em 1928, a 10ª estrutura mais alta da cidade e uma espécie de versão "geordie" da Tower Bridge de Londres.

Após a partida dos romanos em 410, a povoação assistiu à chegada dos Saxões, dos Vikings e mais tarde dos Normandos, uma espécie de Vikings recauchutados por uma permanência prolongada em terras francesas. Junto à ponte construíram uma nova fortificação, inicialmente em madeira e turfa, fortaleza essa que seria substituída mais tarde por um poderoso castelo em pedra, rodeado por muralhas imponentes. Este novo castelo acabou por dar o nome à cidade até aos nossos dias.

Dos tempos romanos pouco ou nada sobra actualmente no centro de Newcastle. Muita da pedra da Muralha de Adriano e do próprio forte foi reaproveitada nas fortificações normandas mas pode-se sempre percorrer a longa Westgate Road que, partindo do castelo para Oeste, segue aquele que era o traçado da Muralha, sendo possível encontrar algumas referências sugestivas em termos de toponímia. O topónimo Westgate propriamente dito, já diz respeito à porta Oeste das muralhas medievais da cidade.


Praticamente no extremo Oeste da Westgate Road é possível encontrar o que resta das muralhas medievais (séculos XIII e XIV) que envolviam a Newcastle e que foram muito úteis para manter os irrequietos escoceses em respeito em vários momentos da História. Marcam o limite entre uma zona de bares em edifícios de aspecto industrial e uma zona verde. Reparem no lixo que se avista na relva. Se por um lado se encontram copos e embalagens um pouco por todo o lado, já cocó canino é coisa que não se vê em lado nenhum. É que, para um britânico, deitar lixo para o chão ainda vá, agora deixar cocó de cão é pura falta de civismo!



Em plena Westgate Road, este pub tem o sugestivo nome de Milecastle, recordando as fortificações que os romanos construíram a cada milha (romana pois claro) ao longo da Muralha de Adriano. Serve um excelente fish n'chips e podemos escolher entre um filete panado simples e algo cujo interior é semelhante ao de um douradinho. Isto percebi logo à 4ª vez.



Ao chegar ao centro, deparamo-nos com o Black Gate, a Porta Negra, o que resta da porta principal da cidadela do castelo normando, actualmente em processo de reabilitação.


O Castelo Normando, que tem algumas semelhanças com a Torre de Londres, é uma estrutura imponente e foi cuidadosamente restaurado. Aqui avista-se a entrada original a meia altura, à qual se acedia por uma escada amovível, e sobre a qual se encontra um balcão com os típicos "mata-cães". 

Nesta fachada é possível distinguir claramente as partes mais antigas das partes restauradas, diferenciadas de forma bastante simples e inteligente.

Futebol e Chinatown

Falar de Newcastle é falar também de futebol, pois claro! Antes de enveredarmos pela Westgate, fomos espreitar St James Park e o estádio do clube de futebol local, o Newcastle United Football Club, onde há uns meses atrás o Benfica jogou no caminho até à final da Liga Europa e onde tem lugar um dos "derbys" mais renhidos da Premier League: o Newcastle vs Sunderland.

A estação de metro de St James Park é toda ela dedicada ao Newcastle United, sendo decorada a preto e branco. Encontram-se aí também várias referências às grandes figuras que passaram pelo clube, como a do nosso bem conhecido e já falecido Sir Bobby Robson, que em Portugal treinou Sporting e FC Porto.


As pegadas de Bobby Robson imortalizadas na estação de metro de St James Park, ao lado de outras pertencentes a outras figuras que passaram pelo clube local como Alan Shearer.


O estádio do Newcastle junto ao qual se encontra, entre outras, a estátua de Bobby Robson.

Sendo uma cidade multicultural com 8% de população asiática, Newcastle tem também a sua Chinatown, devidamente assinalada por um pórtico oriental. Para lá dele descobre-se que afinal esta Chinatown é apenas uma rua e, ao contrário do que acontece por exemplo em Londres (lembram-se?), os preços não são tão amigáveis para o turista que quer comer barato.

O pórtico oriental que marca o início da Chinatown de Newcastle. Para lá dele a comida não é tão barata como na Chinatown de Londres mas, em compensação, o pórtico é muito mais bonito.


A cidade industrial


Actualmente a economia da cidade assenta sobretudo no comércio e nos serviços, um cenário bem diferente daquele que levou Newcastle ao papel de protagonista da Revolução Industrial no século XIX. 

Uma rua pedonal comercialno coração de Newcastle já vazia devido ao adiantado da hora, quase 22h. Esta rua conduz do rio Tyne à zona das duas universidades da cidade. Para além de alguns transeuntes dispersos, só encontrámos alguns jovens que jogavam à bola e andavam de bicicleta. A chegada de um polícia levou a que se dispersassem imediatamente pois nada do que estavam a fazer era permitido nesta rua.

No auge da era industrial, instalaram-se aqui várias indústrias pesadas ao mesmo tempo que nas redondezas prosperavam as minas de carvão. Hoje a cidade ainda ostenta algumas feridas ambientais desse período mas ambiciona em breve tornar-se uma das cidades mais limpas do Mundo através de um plano de redução de emissões de carbono e de limpeza de zonas poluídas.

De todas as indústrias a que mais se destacou foi a indústria naval, concentrada mais a jusante no Tyne, em Wallsend (fixem este nome). Dos estaleiros da Swan Hunter & Wigham Richardson saíram inúmeras embarcações de guerra e de transporte de passageiros, destacando-se destes últimos o RMS Mauretania, em 1906 o maior paquete do Mundo, e o RMS Carpathia que ficou famoso por ter participado no resgate das vítimas do naufrágio do Titanic.


O rio Tyne, outrora a grande autoestrada e centro industrial de Newcastle.


Esta indústria foi perdendo lentamente o seu fulgor até que já neste milénio a empresa anunciou o encerramento definitivo dos estaleiros e a sua reconversão total em empresa de desenho de projectos navais.


Tudo a postos!

Feito o reconhecimento de Newcastle, voltámos para o nosso pequeno hotel em Heaton, situado aproximadamente a meio caminho entre o centro da cidade e Wallsend, onde começaríamos a percorrer o trilho no dia seguinte. Foi estranha a sensação de caminhar pela rua ainda com luz do dia quando já passava das 22h mas as noites por esta altura são muito mais curtas nestas paragens.




O hotel escolhido, aproveitando uma promoção do Booking, foi o Corner House, um pequeno hotel bem simpático com um pub no rés-do-chão. Apesar de termos demorado algum tempo a ser recebidos, o pessoal provou ser extremamente simpático. Tudo estava agora a postos para o início da grande caminhada.

Amanhã: O início do trilho e um encontro digno de Stephen King!


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