Os Portugueses que foram a Malta I - Passeio à luz das velas

O primeiro contacto com a realidade maltesa foi bastante esclarecedor e disse logo tudo acerca da têmpera daquele povo, capaz de passar do afável  à ira em menos de um fósforo (daqueles pequenos), mas já me estou a adiantar. Vamos lá contar isto desde o início.

A viagem até Malta impôs uma primeira etapa de comboio até Madrid, dado que não existem voos directos low-cost de Portugal até este destino. 5h de ressonos depois, afinal o comboio apanha-se na Guarda para lá da 1h30 da manhã, chegámos à capital espanhola pelo raiar do dia, tendo tido tempo para um rápido passeio pelas calles madrilenas que viviam o fervor da festa nacional da Senhora do Pilar. 

Praça das Portas do Sol, Madrid, decorada a rigor para a festa nacional de Nossa Senhora do Pilar. 

Chegada a hora da partida, dirigimo-nos ao aeroporto de Barajas para aí apanharmos o voo com destino a Malta. Obviamente não nos preocupámos com as notícias recentes de alguns ataques de pânico que teriam acometido os pilotos da Ryanair. Aliás, segundo pudemos observar, o piloto do nosso voo era todo ele tranquilidade.


Bem-vindos a Malta!

A chegada a Malta trouxe inevitavelmente consigo um choque térmico, ao contactarmos com uma temperatura que, apesar da hora, rondava ainda os 30º e uma apreciável humidade atmosférica. O arquipélago de Malta tem uma área idêntica à do concelho de Sintra (316km2) e uma população superior a 400.000 habitantes, o que faz deste país o mais densamente povoado da União Europeia. Não havendo outro transporte público para além de autocarro e táxi, optámos por apanhar o primeiro para chegar a Kalkara,  a localidade piscatória onde iríamos ficar durante a nossa estadia. 

Depois de um trajecto de alguns minutos, ao longo do qual deu para perceber que as construções em Malta são monocromáticas, todas elas construídas com calcário ou da cor deste, apeámo-nos para apanhar o 2º e último autocarro. Ficámos surpreendidos pela quantidade de gente que esperava pelo mesmo autocarro que nós mas logo um simpático casal de cinquentenários, que meteu conversa connosco nos esclareceu acerca do motivo daquele ajuntamento. 




Havia nessa noite em Birgu, pertíssimo de Kalkara, uma festa anual peculiar: Birgu à Luz das Velas. Explicaram-nos que todas as ruas da cidade eram iluminadas apenas com velas, havendo depois várias actividades um pouco por toda a parte. Enquanto ouvíamos as explicações, o autocarro finalmente aproximou-se, vindo já bastante cheio. 

Acto contínuo, toda a gente se concentrou junto à porta e uma rapariga que entretanto tinha chegado, ousou entrar no autocarro antes do nosso casal de interlocutores. Eu quase podia jurar que estes aumentaram consideravelmente em tamanho e musculatura para além de terem ganho um certo tom esverdeado. Bom, certo é que entraram logo no autocarro em perseguição da rapariga, e tivemos oportunidade de assistir a uma boa e acalorada discussão em maltês, abrilhantada por uma sucessão de agarrões e sacudidelas. 

A luta por um lugar no autocarro compensou para apenas meia dúzia de pessoas já que o condutor gritou "Está cheio!" e mandou sair ainda alguns dos que tinham também arriscado entrar.

A solução, por indicação de uma simpática jovem maltesa, passou por apanhar um autocarro que não chegava a Birgu, fazendo depois os restantes 2km a pé. Assim fizemos, chegando finalmente já perto das 20h ao nosso alojamento onde fomos simpaticamente acolhidos pelo Aldo, o nosso anfitrião que logo nos animou dando-nos as boas-vindas e acrescentando que nos tinha guardado um quarto no último andar com uma bela vista sobre a marina. Deixando as bagagens no quarto, saímos pouco depois, como mariposas atraídas pelas velas de Birgu, que ficava ali logo do outro lado do porto.


Birgu, a cidade vitoriosa bem protegida por imponentes fortificações, vista do nosso quarto.


Birgu, a Cidade Vitoriosa à luz das Velas

Após contornarmos o porto, entrámos em Birgu por uma pequena porta nas muralhas, chegando a uma área pouco ou nada frequentada mas toda ela decorada por velas. Sem saber o caminho a seguir, a opção mais lógica passou por caminhar na direcção de onde parecia vir maior ruído e não tardou muito para que chegássemos ao centro e nos deparássemos com um verdadeiro mar de gente, entre espectáculos audiovisuais e animação musical.


Passada a pequena porta das muralhas, estamos em Birgu!

Alinhadas ao longo de ruas apinhadas de gente, várias "barraquinhas" vendiam doces e petiscos de várias formas e feitios. Os estômagos vazios puxaram-nos em direcção àquela panóplia de cores e cheiros e não tardou muito para que trincássemos uns deliciosos pastéis de tâmaras, apenas o aperitivo para o jantar que se seguiria, à média luz no claustro de um convento de dominicanos.


Cores, formas, cheiros e sabores... os únicos com direito a iluminação eléctrica. Aquele miúdo lá ao fundo que nos vendeu dois belos pastéis de tâmaras a 50 cêntimos a unidade, ficou-me no coração.


Bolinhos, uns mais típicos que outros, vendidos ao peso. Em Malta não há ASAE mas nem por isso os habitantes deixam de ser felizes.

Uma das ruas de acesso ao centro, iluminada pelas velas. 

No âmbito da festa das velas, foi possível visitar os dois principais espaços museológicos de Birgu, comprando um bilhete único por apenas 4 euros. O primeiro, também como pretexto para fugir à confusão da rua, foi o Palácio do Inquisidor.

Este edifício seiscentista, foi a residência oficial dos 62 sucessivos Inquisidores-mor de Malta que, de 1574 a 1798, a partir desta imponente construção, protegeram os fiéis católicos malteses dos desvarios heréticos das religiões alternativas e do pensamento próprio.

O palácio, alvo de sucessivas obras por parte dos seus ocupantes, possuía todas as infraestruturas e comodidades de que um Inquisidor-mor precisava para ser feliz: alojamentos, salas de reunião e de jantar, cozinhas bem apetrechadas, um belo pátio interior, uma sala de audiências, celas prisionais e uma sala para interrogatórios mais incisivos.

A sala de audiências do Tribunal do Santo Ofício.

A sala de interrogatórios que permitia que muitos dos réus daqui saíssem com uma flexibilidade de membros inédita.

Nas celas, o tempo passava de forma demasiado lenta para os prisioneiros. A necessidade de distracção levou ao surgimento de verdadeiras obras de arte nas paredes das celas, como esta flor, sobre um grafito de escrita árabe.

De volta à rua, fomos à procura do 2º museu, o Museu Marítimo. Caminhando pelas ruas, não pudemos de achar interessantíssimo o nível de envolvimento da população na festa, tendo em conta que a maior parte das janelas e varandas das casas estavam também decoradas com velas. Mas a adesão não se fica por aí. Há quem chegue até a decorar com velas o interior das próprias casas, abrindo as portas e janelas para que os transeuntes o possam apreciar.

Garrafas de refrigerantes diversos reaproveitadas contribuem para dar uma nota mais colorida às decorações.

O interior de uma casa particular decorado a rigor. Foi uma de muitas que pudemos ver.


A Misrah ir-Rebha, que é como quem diz, a Praça da Vitória, estava completamente cheia de gente que assistia a um concerto que aí decorria. A sensação de estamos a ouvir uma interpretação em maltês, foi semelhante a assistir ao Festival Eurovisão da Canção ao vivo. "Malta, 12 points!".

Para chegar ao Museu Marítimo, foi preciso passar pela marina que se situa do lado oposto à que temos diante do nosso hotel (Birgu situa-se numa pequena península). Aí foi possível testemunhar o vai-vem dos barcos-taxi que transportavam pessoas de e para Isla ou Valletta.

O Museu Marítimo testemunha de forma notável a importância estratégica de Malta no Mediterrâneo desde a Antiguidade até à 2ª Guerra Mundial, dando especial destaque à forma como a Ordem dos Cavaleiros de São João de Malta se tornou uma potência naval e a ponta de lança da cristandade contra o Islão. 


La pièce de résistance do Museu da Marinha: a maior peça de âncora romana encontrada até hoje. 4 toneladas de puro chumbo.

Para completar o passeio, ainda houve tempo para ir à extremidade da península de Birgu para admirar o imponente Forte de São Ângelo, Forti Sant'Anġlu para os locais, passando por uma parte da marina que parecia ter sido reservada para o clube dos amigos de Abramovich, tal era a quantidade e dimensão de iates de luxo que ali estavam amarados.

O Forte de São Ângelo, na extremidade de Birgu.

A seguir: Marsaxlokk, La Valletta e os amigos ganhos graças ao GPS


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