"Cart ruts", as misteriosas marcas na paisagem de Malta

No passado mês de Junho tive a oportunidade de visitar aquele que será, muito provavelmente, um dos mais intrigantes enigmas arqueológicos da bacia do Mediterrâneo, gerando ainda hoje um intenso debate sobre quem foram os seus autores e qual seria a sua finalidade. Estou a falar dos "cart ruts", as misteriosas linhas rasgadas na superfície rochosa do arquipélago de Malta.


O último dia da nossa estadia em Malta começou bem cedo e, ainda antes do pequeno-almoço, peguei na máquina fotográfica e subi pelas intrincadas ruas de Kalkara, a localidade piscatória onde estávamos alojados, decidido a não partir sem admirar uma das ocorrências dos "cart ruts", as misteriosas marcas de que tanto havíamos ouvido falar.

Tendo consultado um livro dedicado a elas e tendo ainda feito alguma pesquisa no Google Maps, fiquei a saber da existência de um conjunto dessas marcas que não muito longe do hotel. Àquela hora, via-se ainda pouco movimento nas ruas enquanto as portas dos estabelecimentos comerciais iam abrindo aos poucos. Alguns minutos depois, cheguei finalmente ao muro que delimitava a propriedade onde os "cart ruts" se encontrariam.

O muro era alto e uma porta trancada fechava a única passagem visível. Enquanto ponderava sobre se devia ou não invadir o terreno, de uma casa em frente saiu um homem que ia iniciar a sua jornada laboral. Abordei-o e, apresentando-me e explicando-lhe o porquê de estar ali, pedi-lhe que me confirmasse se realmente existiam "cart ruts" atrás daquele muro e, se sim, como poderia eu fazer para os fotografar.

Num inglês com característico sotaque italiano, tipicamente maltês, confirmou que efectivamente existiam ali as ditas marcas mas explicou-me também que o terreno era privado mas que ele conhecia o dono do terreno e que ele costumava andar por ali durante o dia. Dito isto, aproximou-se do muro gritando "Laurie! Laurie!". Do outro lado não veio resposta. Depois de alguma insistência, e de um aceso diálogo em maltês com um casal que por ali passou, do qual só consegui perceber "portoghese" enquanto apontava para mim, pediu-me que aguardasse um pouco e trepou o muro, desaparecendo do outro lado. Pouco depois, a porta abriu-se, saíndo dela o Mário na companhia de um casal de sexagenários, Laurie e a sua esposa.


Dos estaleiros navais à falta de chuva

Lawrence, reformado após 46 anos de trabalho administrativo nos outrora frenéticos estaleiros navais do Grande Porto, posa junto aos "cart ruts". 

Feitas as apresentações, assim como as despedidas, fiquei a sós com o meu cicerone que se mostrou extremamente satisfeito pelo meu interesse no seu tesouro histórico. Convidou-me a acompanhá-lo até às marcas, por um percurso que se fez por um terreno relativamente plano mas predominantemente rochoso, com algumas árvores, onde as esporádicas bolsas de terra eram aproveitadas para cultivo.

Laurie, diminutivo de Lawrence, foi-me explicando que passava os seus dias naquele terreno, onde aproveitara todas as zonas cultiváveis para plantação, sobretudo de batatas. O maior problema era a irrigação, dado que estávamos naquela que era normalmente a época das chuvas em Malta e até então muito pouco chovera. A preocupação era evidente. O único poço da propriedade, escondido sob uma alfarrobeira, apresentava um nível de água muito baixo e as depressões no afloramento rochoso, que Laurie limpara para recolher água da chuva, tinham apenas restos de água lamacenta.

Foi com a confissão destas preocupações que chegámos aos "cart ruts".

O enigma dos "cart ruts"

A origem e a razão de ser destas marcas são actualmente motivo de acesso debate, até porque, logo à partida é difícil relacioná-las com qualquer outro elemento arqueológico de Malta. Há quem atribua a sua autoria aos construtores dos grande templos que começaram a ser erigidos há 6.000 anos atrás mas outros defendem uma data mais recente, atribuíndo a sua autoria aos Fenícios, no século VII a.C.. No entanto, há túmulos fenícios foram construídos em pleno traçado de alguns destes trilhos, o que leva a pensar que não serão contemporâneos. A ajudar à discussão, há "cart ruts" que contornam estruturas de origem romana ou... será que as estruturas romanas é que contornam os "cart ruts"?



Uma característica bifurcação. Segundo Laurie, um dos trilhos levaria para a Baía de Rinela, enquanto outro tomaria a direcção da costa mais a Norte.

Quando à finalidade das marcas, é já comumente aceite que se tratará de trilhos de carros de transporte. Mas que tipo de carros? Seriam rodados ou de arrasto? Teriam tracção animal ou humana? O que transportavam? São questões que permanecem em aberto relativamente a estas marcas, em média espaçadas por 1,4m e chegando a atingir em determinadas zonas 60cm de profundidade.

Uma característica muito peculiar é a profusão de marcas que se encontram pelas ilhas, formando verdadeiras malhas com bifurcações e intersecções que lembram as linhas de caminho-de-ferro. Um dos locais onde isso é mais evidente foi até baptizado de "Clapham Junction", em alusão à estação ferroviária londrina que é uma das mais movimentadas da Europa.


Ver mapa maior
Sítio de Misrah Ghar il-Kbir, conhecido popularmente por Clapham Junction. Cliquem no link acima para abrir o mapa numa janela maior.

As marcas eram na época da sua utilização sem dúvida bem visíveis na paisagem, sendo provavelmente as autoestradas destas ilhas. A sua formação deu-se pelo uso repetido dos mesmos percursos, algo que foi desgastando o solo que se encontrava sobre o afloramento rochoso, desgastando este em seguida.

Essa é aliás a opinião partilhada também por  Laurie -"Não se deixe enganar pelo aspecto dos cart ruts. Antigamente a pedra estava coberta de terra e era sobre ela que as pessoas puxavam os carros que fizeram as marcas." e apontando para uma depressão na rocha onde as marcas parecem terminar: -"Está a a ver aqui? Isto não foi escavado, estava era cheio de terra que eu retirei para aproveitar a água da chuva. Tive de pedir autorização para o fazer às autoridades porque eles são muito rigorosos em relação a isto."


As marcas junto a uma depressão de onde a terra foi retirada para aproveitar a água da chuva. 

A preocupação com a preservação das marcas vem aliás de longe. -"Há aqui mais marcas que estão cobertas pela terra. Uma vez perguntei ao meu pai se ele queria que eu limpasse a terra, para deixar os cart ruts todos à vista, mas ele disse que era melhor não o fazer porque pelo menos assim ficavam protegidos. Hoje em dia é isso que as autoridades nos pedem, que não os destapemos para não desaparecerem por causa da erosão."

Já em direcção à saída acrescentou -"Às vezes vêm cá pessoas, como você, a pedir para verem os cart ruts. Eu gosto que vejam. É bom que as pessoas se interessem por isto, para conhecerem a nossa História.". Na despedida, Laurie chamou-me para junto do limoeiro, onde colheu dois limões para me oferecer. -"Quer levar mais? Infelizmente só tenho limões. Se tivesse vindo em Agosto eu oferecia-lhe uns frutos deste cacto.", referindo-se aos frutos que conhecemos como figos da Índia, "Também poderia levar alfarrobas mas de momento só tenho mesmo limões".

Despedimo-nos com um caloroso aperto de mãos e desejando mutuamente felicidades. Regressei ao hotel levando na bolsa dois limões mas, mais importante que isso, um sorriso proporcionado pela inestimável simpatia  e hospitalidade com que fora recebido.

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