Sobre Eusébio e o Panteão Nacional

Na última semana toda a actualidade noticiosa girou em torno da morte de Eusébio da Silva Ferreira, provavelmente o melhor futebolista português de todos os tempos. Como é usual em situações que envolvam fortes reacções emocionais por parte da opinião pública, a comunicação social explorou para além do razoável esta matéria, matéria essa que também proporcionou uma oportunidade de ouro para a classe política marcar pontos junto do eleitorado. Cavalgando a onda do populismo, todas as forças partidárias abraçaram agora a nova causa nacional: levar o defunto futebolista para o Panteão Nacional, mesmo que tal não esteja de acordo com a lei.

Em primeiro lugar convém entender aquilo que é, ou supostamente devia ser, o Panteão Nacional. Embora a necessidade de criação de um Panteão Nacional "destinado para receber as cinzas dos grandes mortos depois do dia 24 de Agosto de 1820" tenha sido feita pelo Decreto de 26 de Setembro de 1836, só lhe seria definida uma localização física pela lei nº520 de 1916, destinando-lhe o "antigo e incompleto templo de Santa Engrácia" e atribuíndo a posse do edifício ao Ministério do Fomento para que ali fizesse as necessárias obras. No entanto, o edifício só seria terminado em 1966, 284 anos após o início das "obras de Santa Engrácia". A partir de 2003, passaria a dividir o estatuto de Panteão Nacional com o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde se encontram os restos mortais de D. Afonso Henriques e D.Sancho I.


O Panteão Nacional foi inaugurado com pompa e circunstância pelo regime salazarista, e para ali foram trasladados logo nesse ano os restos mortais de Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, Óscar Carmona e Sidónio Pais, ou seja, 3 escritores (no caso de João de Deus, também um pedagogo que marcou várias gerações), 2 presidentes da República e um "híbrido", pois embora Teófilo Braga tenha sido presidente da República durante alguns meses, destacou-se mais na Literatura. 

As figuras mais polémicas deste lote serão provavelmente Óscar Carmona que, pese embora a sua ilustre carreira militar, foi um dos líderes do golpe de 28 de Maio de 1926 que acabou por levar ao estabelecimento do Estado Novo, e Sidónio Pais, o Presidente-Rei como lhe chamou Fernando Pessoa, que implantou em Portugal o regime totalitário da República Nova, passando por cima da Constituição então em vigor, acabando por ser assassinado em 1918. Muito provavelmente, os restos mortais destes dois últimos cidadãos ilustres nunca teriam sido trasladados para o Panteão se isso não tivesse acontecido em pleno Estado Novo.

Seria depois preciso aguardar até 1990 para que este grupo fosse aumentado, com a deposição dos restos mortais de Humberto Delgado, o General Sem Medo mas já não foi preciso esperar tanto para que merecessem honras de Panteão Amália Rodrigues (2001), Manuel Arriaga (2004) e Aquilino Ribeiro (2007). A próxima personalidade será Sofia de Mello Breyner, ao que tudo indica já este ano.

Embora não presencialmente, estão homenageados no Panteão através de cenotáfios, ou seja, de monumentos/inscrições evocativas, as figuras de Luís de Camões, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama e Infante D. Henrique.


Critérios definidos por lei!

Os critérios que regem a atribuição de honras de Panteão estão bem definidas pela lei 28/2000 de 29 de Novembro, que veio substituir as anteriores e, segundo a qual, "as honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade."

Ora, tendo em conta os critérios dispostos na lei, onde é que se enquadra Eusébio? Simplesmente em nenhum deles. Pelo contrário, a figura de Amália, usada como argumento em algumas opiniões pró-Eusébio como o exemplo de que nem só escritores ou políticos merecem o Panteão (a lógica de algumas opiniões até me leva a crer que a seguir a Amália e Eusébio, chegaria com naturalidade a vez da irmã Lúcia), é perfeitamente enquadrável no aspecto da expansão da cultura portuguesa e na criação artística. 

Não esqueçamos que a cantora, que tinha raízes no Fundão, tirou o fado das tascas de Lisboa e deu-o ao Mundo, sendo o grande motor do processo que redundaria na sua classificação como Património Imaterial da Humanidade em 2011, 10 anos após a morte da fadista. Nem teria sido necessário alterar a lei de forma a ser depositada no Panteão logo um ano após a sua morte, em vez dos 5 que até então eram necessários.

Para que Eusébio mereça honras de Panteão a lei teria de ser novamente alterada, o que criaria uma prática perigosa e descaracterizante, banalizante até, que seria nociva para o valor sagrado do Panteão Nacional. Eusébio foi provavelmente o melhor jogador português de todos os tempos e é justo que seja lembrado como tal, dando o seu nome a um estádio, a um museu promovido pela Federação Portuguesa de Futebol ou eternizando-o na toponímia mas levá-lo para o Panteão é excessivo. Existem muitos nomes que -esses sim!- mereciam há muito estar em Santa Engrácia. Egas Moniz, Eça de Queiróz, Fernando Pessoa e Aristides de Sousa Mendes são nomes que me ocorrem logo à partida mas muitos outros há.

Esta questão foi levantada ainda quando decorria o velório de Eusébio mas também sabemos que uma decisão importante tomada a quente pouco deverá à assertividade e à ponderação. O que se pede é que haja respeito por Eusébio e pelo Panteão Nacional.

Foto da inaguração do Panteão Nacional: Lisboa Memory Scapes

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