Caminho Inca, Parte 1 - Cusco, o Umbigo do Mundo

Cusco, com o Centro Histórico em primeiro plano.


"Bem-vindos à Cidade Imperial de Cusco"

A voz do comandante que se ouviu à chegada, através dos altifalantes do avião, deu logo a entender que esta não é uma cidade qualquer. Cusco é actualmente um dos pilares da identidade peruana e, tanto na Constituição da República como no coração dos andinos, esta é ainda a capital histórica do Peru, a Qosqo a partir da qual os Incas controlaram um império que se estendia da Colômbia à Argentina. Bem a propósito, o seu nome significava o Umbigo do Mundo.

Para além de querermos conhecer a cidade, também pretendíamos, com a nossa estadia de 6 dias, adaptar-nos à altitude de forma a podermos apreciar da melhor forma o Caminho Inca sem termos de lidar com o Soroche, o "mal das alturas". Afinal, Cusco situa-se a 3.400 m de altitude e muitos são os que aqui experimentam fortes dores de cabeça, náuseas e fadiga devido à falta de oxigénio. O plano passou por explorar apenas o centro histórico e os museus da cidade nos primeiros dois dias, alargando depois o nosso raio de acção a visitas guiadas e caminhadas autónomas pelos arredores.

Uma das formas de combater o Soroche passa pelo consumo de folhas de coca, mascadas ou em infusão, como manda a tradição local. Aliás, foi possível encontrar logo no hall de entrada do nosso hostel (ver aqui) um cestinho cheio destas folhas e um dispensador de água quente, do qual nos podíamos servir livremente. Certo é que a infusão de coca passou a fazer parte da nossa rotina matinal diária (sem abusar, claro, não fôssemos nós cair na tentação de encetar diálogos com lamas imaginários), tanto em Cusco como no próprio Caminho Inca, e em momento algum sentimos os efeitos nocivos da altitude.

Cusco é uma cidade de extremos. Com um centro histórico magnífico, classificado pela Unesco como Património da Humanidade, a cidade está ao mesmo tempo rodeada por bairros pobres, encavalitados nas encostas que rodeiam o vale de Cusco.

Para lá do centro histórico, estendem-se os bairros mais pobres, com ruas de terra batida entre outras infra-estruturas precárias. Um dos problemas mais graves de Cusco, que salta bem à vista, é o sistema de recolha de lixo, que faz com que este se vá amontoando nas ruas, tendo depois de ser retirado com escavadoras e camiões.


A dois passos do Centro Histórico, em San Blas, o cenário é bem menos monumental mas bastante pitoresco


Quando se passeia pelas suas ruas, o que salta imediatamente à vista são os inúmeros vendedores de rua, que oferecem desde peças de artesanato a visitas guiadas e massagens, e o trânsito caótico. De facto, no Peru não parece haver particular interiorização das regras de prioridade, tanto entre veículos como entre veículos e peões mas, pelo menos, isso permitiu que eu finalmente conhecesse com rigor o conceito de tangente. Outro aspecto significativo: os peruanos parecem ter a buzina ligada aos pedais. A todos. Talvez até à alavanca de mudanças. O não respeito pelas passadeiras é outro facto gritante, ficando-se com a impressão que estas se destinam simplesmente a assinalar o ponto onde os peões deverão atravessar a rua por sua conta e risco.

Por estas bandas é um hábito proteger o tablier dos carros com uma capa têxtil, tal como pendurar amuletos no retrovisor, sempre protegidos em plástico para não apanharem pó. A título de exemplo em relação à flexibilidade dos preços, à chegada, na nossa fase "maçaricos", uma viagem entre o aeroporto e o centro custou-nos 40 soles (cerca de 12 euros) mas no sentido inverso ficou-nos por apenas 10 soles (cerca de 3 euros).


Os táxis também são fáceis de detectar. Não temos de chamar por eles pois basta-lhes ver alguém à beira da estrada para logo darem uma curta buzinadela e fazerem sinais de luzes, à espera de uma resposta para encostarem. Claro que é aconselhável escolher táxis oficiais e não os veículos sem qualquer identificação, por uma questão de segurança. Quanto às tarifas, não possuem taxímetro. Como tudo o que se vende na rua e até nas lojas (ou até em restaurantes, como nos aconteceu), o preço é sempre negociável e convém fazê-lo antes de entrar no veículo.


O Centro Histórico de Cusco.

A Basílica Catedral da Virgem da Assunção domina a Plaza de Armas, a praça principal da cidade. A catedral, tal como quase todas as igrejas da cidade, foram construídas sobre edifícios de poder ou de culto dos Incas, neste caso sobre o templo-palácio de Viracocha e sobre o Suntur Wasi, o arsenal da cidade inca. Não, a bandeira da esquerda não é a bandeira do orgulho gay mas sim a bandeira de Cusco. Esta última tem 7 cores, contra 6 da primeira.


Como já foi dito atrás, Cusco foi em tempos a capital do Império Inca. Convém dizer que a generalização do termo "Inca" se deve aos invasores espanhóis aqui chegados no século XVI. Na verdade "Inca" era o nome que os súbditos davam aos seus governantes, sendo o governante máximo (o "imperador") chamado de "Sapa Inca". O império era designado por Tahuantinsuyu, literalmente "as 4 partes" ou "as 4 regiões".

Embora haja vestígios que fazem recuar a ocupação de Cusco a até 3.000 anos atrás, foi com o grande Inca Pachacutec que a cidade se tornou o centro do império. Do seu centro, a actual Plaza de Armas, saíam as 4 estradas reais que levavam aos 4 "suyus", Chinchasuyu a Norte, Kuntisuyu a Oeste, Qullasuyu a Sul e Antisuyu a Este, esta a região da qual fazia parte a cidade de Machu Picchu.

Estas estradas estão ainda hoje bem identificadas em Cusco e é possível percorrer uma considerável extensão das mesmas. Esta rede viária, que no seu auge cobriu mais de 30.000 km está também classificada como Património da Humanidade pela Unesco. Durante a nossa estadia, palmilhámos várias dezenas de quilómetros da estrada do Antisuyu, tanto em Cusco como a caminho de Machu Picchu.

Entre a Hatunrumiyoc e a Cuesta San Blas, vemos no chão um dos símbolos que assinalam a antiga rede viária inca, neste caso a estrada para o Antisuyu. O símbolo do Puma diz respeito ao formato da planta da cidade enquanto capital Inca, semelhante a este felino. Quanto à Cuesta San Blas, pelo incontável número de vezes que a subimos, podemos dizer que se tratou de um excelente local de treino para o Caminho Inca.


Em muitas das paredes exteriores e até interiores dos edifícios é possível ver ainda a marca construtiva dos Incas, contrastando o aparelho menor e regular dos períodos colonial e pós-colonial com as grossas paredes inclinadas de pedra irregular do período Inca.


Na Hatunrumiyoc, o impressionante aparelho construtivo inca da parede do actual Palácio Arcebispal não passa despercebido. Trata-se do que resta de um palácio Inca que se viu consideravelmente reduzido em altura para dar lugar ao edifício actual. O reduzido tamanho das pedras de base, os encaixes perfeitos e sem argamassa das maiores (com um segredo bem interessante do qual falarei depois) e a inclinação dos muros tinham um objectivo maior que ia para além do meramente estético: era uma construção à prova de sismos. Já agora, conseguem ver as protuberâncias nas bases das pedras maiores? Sabem para que serviam? Mais à frente também direi.


O Qurikancha (ou Qorikancha) era o mais importante espaço religioso da capital Inca. Fundado pelo grande Inca Pachacutec, era um conjunto de templos rodeados por um alto muro exterior coberto por folha de ouro. Quando os espanhóis chegaram, o ouro foi pilhado e sobre o complexo foi construído o Convento de São Domingos, visível na foto sobre o tal muro exterior do antigo complexo. No seu interior parte dos antigos templos foi devolvida à luz do dia.


Dentro do espaço do Qurikancha encontramos a mais pequena pedra do Tahuantinsuyu.


No interior do espaço do Qurikancha, revela-se o segredo da coesão dos muros incas. Para além de um talhe perfeito das pedras para encaixarem umas nas outras sem qualquer folga, eram trabalhadas como "legos" (para encaixar nos espaços côncavos na parte inferior haveria pedras talhadas com protuberâncias) e a ligação também podia ser reforçada com a aplicação de metal derretido, provavelmente cobre, em espaços como o que se vê na parte superior.



Em Cusco não nos sentimos de modo algum inseguros. Nas ruas há sempre várias forças polícias em patrulha: Polícia de Trânsito, Polícia Turística, Polícia Nacional, Polícia Municipal, etc. Falando desta última, é caricato assistir ao jogo do gato e do rato em que se envolve com os vendedores ambulantes. Sendo vistos como actores indesejáveis das ruas de Cusco, foi feita legislação para proibir a presença desses vendedores mas, no terreno, a lei não é totalmente posta em prática. Quando se aproxima de um vendedor que tem os seus produtos expostos ou está a tentar vender algo a um turista, o agente da polícia apita. Acto contínuo, o vendedor recolhe o seu produto ou cessa a venda com um ar de um certo constrangimento para, logo após a passagem do agente, voltar a expor os seus produtos ou retomar a negociação interrompida.



Um agente da Polícia de Trânsito e uma mota tipo "Famel" com aspecto de quem se prepara para "dar gás".


Por outro lado, a sensação de segurança é reforçada pela enorme simpatia dos habitantes locais, sempre com um sorriso na boca e disponíveis para ajudar quem quer que precise. Constatámos que até quando recusamos os produtos dos vendedores de rua, estes nunca se negam a dois dedos de conversa ou a dar indicações se lhas pedirmos. É impossível não gostar dos cusquenhos. Claro que na periferia há sempre zonas inseguras mas, durante toda a nossa estadia, não tivemos qualquer tipo de problema e também não temos qualquer razão de queixa do tratamento que nos foi dado, bem pelo contrário.


A Alimentação

Em Cusco descobrimos as delícias da gastronomia peruana. A partir de meia-dúzia de soles é possível comer uma boa refeição mas também não faltam locais para comida mais rápida. Pudemos provar as sopas -as crioulas e a de quinoa foram as nossas favoritas-  e alguns pratos mais picantes mas o ceviche, um prato de peixe cru marinado em limão e com picante, ficou nas papilas gustativas. Apesar de tudo, o nosso restaurante de eleição foi sem dúvida o Green Point, um restaurante vegan que, por sorte, ficava mesmo ao lado do nosso hostel (ver aqui). 

Os mercados típicos são também um local a considerar para comprar fruta fresca. Não tentámos nem aconselhamos as cantinas que aí se encontram, onde toda a gente come ao monte, em condições um pouco duvidosas. Tanto aí como na secção dos talhos e queijarias, vêem-se coisas que fariam qualquer agente da nossa ASAE ganhar o dia, embora me pareça que em certos aspectos somos realmente um bocado picuinhas. 


Um dos muitos locais de venda de sumos de fruta, este no mercado típico de San Blas. Por 4 ou 5 soles tivemos direito a dois grandes copos de sumo.


As bancadas de venda de fruta dão um colorido atractivo aos mercados.

Não nos furtámos no entanto aos sumos de fruta e é impressionante ver a quantidade de estabelecimentos que os servem, com as senhoras a acenarem-nos para chamar a nossa atenção. Nas ruas de Cusco também se podem comprar maçarocas de milho cozidas, bolos e, à noite, com a temperatura a cair drasticamente, sabe sempre bem uma infusão de ervas bem quentinha.  

Uma infusão de ervas serviu para aquecer na noite fria de Cusco. Continuo sem saber o que continha o copo. Apenas sei que tinha um pouco de cada uma das garrafas e que sabia muito bem.



Os Museus

Vasos Nasca (200 a.C. a 600 d.C) com representação de demónios, Museu de Arte Pré-Colombiana, um museu que aborda a evolução da expressão artística dos povos nativos nos mais variados materiais e objectos de uso quotidiano.


Durante a estadia em Cusco visitámos 3 dos vários museus da cidade: o Museu de Arte Pré-Colombiana, o Museu Inka e o Museu Histórico Regional. Para tirar o máximo partido destes e outros pontos de interesse é fundamental comprar o "Boleto Turístico", um bilhete geral válido por 10 dias e que permite a entrada num total de 16 sítios, a um preço bem mais reduzido do que aquilo que se pagaria por entradas individuais em cada um desses locais. Nós entrámos apenas em 9 e mesmo assim compensou largamente o valor pago.

Cada museu oferece uma visão diferente sobre o período pré-hispânico e sobre o período colonial, complementando-se de certa forma. Foi interessante constatar que, para os peruanos, o período colonial é encarado como um período de ocupação por uma potência estrangeira ao qual eles, descendentes dos Incas derrotados no século XVI, conseguiram pôr cobro após muito esforço . Trata-se ao fim e ao cabo do mesmo sentimento com que nós, portugueses, falamos do domínio Filipino de 1580-1640 e da consequente restauração. Os peruanos apenas demoraram mais tempo a restaurar a sua independência. 


A seguir: 

Por entre muralhas ciclópicas, altares de sacrifícios e túneis completamente às escuras.

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