Caminho Inca, Parte 2 - Da cabeça do Puma ao Templo dos Macacos.

Após dois dias no centro histórico de Cusco, decidimos que era altura de sair da cidade e enfrentar a encosta para explorar o planalto que dominava a cidade. Tínhamos como objectivo visitar dois sítios arqueológicos que sabíamos estarem ali mas, afinal, acabámos por descobrir que aquele planalto escondia muito mais que isso.


O percurso começou com a subida à "cabeça" do Puma de que a planta da antiga capital inca de Qosqo tem a forma, percorreu o planalto sobranceiro à cidade e terminou com o regresso pela antiga estrada real Inca do Antisuyu (a amarelo) que leva à actual Plaza de Armas, num circuito total de 8km entre os 3400 e 3650m de altitude.


A jornada começou com uma falsa partida. Saindo de San Blas, fomos caminhando em direcção à colina onde se situava o nosso primeiro objectivo, a cidadela de Saqsaywaman. A subida foi ficando mais inclinada até chegarmos a mais uma rua onde os passeios eram escadarias. Com o Sol já forte, chegámos ao ponto de entrada do sítio, apenas para descobrirmos que, não só não tínhamos dinheiro suficiente como, ainda por cima, não era possível pagar com multibanco. Foi pois necessário regressar a Cusco para levantar dinheiro, voltando depois a subir aquela mesma rua tipo "quebra-costas".


A partir da Plaza de Armas de Cusco, avistam-se os patamares de Saqsaywaman, no alto do monte situado para lá da igreja de São Cristóvão. Esta igreja foi ela própria construída sobre um antigo palácio Inca.

Percebeu-se então que aquela rua estreita tinha dois sentidos de trânsito, quando um carro que subia se deparou com uma pequena carrinha que vinha a descer e, acto contínuo, todos os ocupantes da carrinha saíram para a empurrar já que por si, dada a inclinação da rua, a carrinha não conseguia fazer marcha-atrás.

Chegando novamente à entrada do sítio, entrámos finalmente em Saqsaywaman, a grande cidadela a partir da qual se domina o vale de Cusco.


Saqsaywaman, a cidadela imperial


O recorte em ziguezague dos muros ciclópicos de Saqsaywaman.

A partir da entrada, que afinal era uma entrada secundária, um caminho levou-nos à recepção principal do sítio, onde, como é regra, os vendedores ambulantes de produtos "típicos" e as pessoas vestidas a rigor e com ovelhas bebé ao colo para a fotografia, a troco de uns soles, marcavam presença. Ao chegarmos, um homem abordou-nos oferecendo os seus préstimos como guia. Como não tínhamos grande informação sobre a cidadela, negociámos o valor e aceitámos a sua companhia, o que acabou por trazer algum valor acrescentado à visita. Já vão ver porquê.



José Luiz, o nosso guia em Saqsaywaman, junto à Porta do Sol (ao fundo à direita).


De acordo com a informação oficial, Saqsaywaman foi, durante o apogeu do Império Inca (Tahuantinsuyu), o local mais importante fora da capital Qosqo (Cusco). Foi consagrada por volta 1460 como Casa do Sol pelo 9º e maior Inca, Pachacutec embora a sua construção tenha sido apenas terminada após uma sucessão de 3 dos seus descendentes. Ao redor da cidadela foram ainda encontrados vários túmulos reais.

Convém referir que a religião oficial do Tahuantinsuyu tinha como divindade principal o Sol, sendo também adorados a Lua, as Montanhas, entre outros mas disso falarei mais em pormenor nos próximos artigos. Aqui, vários deles eram adorados já que  Saqsaywaman foi um grande centro cerimonial de carácter sagrado, cumprindo funções de sede central da religiosidade Inca. Para além disso, era também um local determinante da vida política e social do Império. Ainda hoje este local é o centro de cerimónias mais ou menos escondidas, como se pode deduzir da quantidade de folhas de coca que encontramos depositadas nas cavidades das zonas religiosas.

Subsistem no entanto várias dúvidas sobre a função de várias das estruturas que nos últimos anos foram encontradas, até porque quando os católicos espanhóis aqui chegaram, fizeram questão de saquear e destruir os locais sagrados dos Incas. A própria cidadela forneceu a pedra com que se construiu a Catedral de Cusco, para além de, depois disso, ter sido a pedreira predilecta da cidade. Diz-nos José Luiz que "havia pessoas encarregadas de vender a pedra deste local. Isto chegou ao cúmulo de, já com escavações arqueológicas em andamento, se estar ainda a vender pedra por 5 ou 6 soles". A destruição de Saqsawaman foi ainda potenciada pelo facto de, perplexos com a dimensão e qualidade da construção, os espanhóis não terem acreditado que a construção tinha sido feita pelos "índios", que eram tidos como primitivos e inferiores, mas antes por obra do Demónio. Hoje em dia, como o Demónio é um conceito ultrapassado, há quem acredite que foram na verdade seres extra-terrestres os responsáveis pela construção de Saqsaywaman.

Parece já afastada a hipótese de este local se tratar de uma fortaleza, pelo menos na sua função original. Segundo José Luiz "Vocês na Europa, vêem um grande muro no alto de um monte e pensam logo que é uma fortaleza. Quando os espanhóis aqui chegaram pensaram o mesmo mas não é nada disto que se trata. Vejam os muros, o recorte em forma de relâmpago. Faz sentido que isto seja uma fortaleza? Só o terá sido durante a revolta do Inca Manco Qapac contra os espanhóis, quando ele se entrincheirou aqui mas por pouco tempo. Este sítio não era fácil de defender."

Quanto à construção do sítio, José Luiz alinha com as teses mais defendidas: terão trabalhado neste local mais de 20.000 quechuas, divididos entre tarefas de talhe, transporte e colocação dos blocos. 

Enquanto falamos, Jose Luiz leva-nos até um aglomerado de rochas onde se distinguem plataformas talhadas cujo propósito se perdeu. Seriam locais para colocação de objectos de culto? Divindades? Múmias dos antepassados? Através de um corredor que se estreita cada vez mais, chegamos à entrada de um túnel toscamente talhado. 

José Luiz pergunta-nos -"São claustrofóbicos? Não? Então vamos entrar e percorrer o túnel. Não temos luz mas você (apontando para a Ana) agarra a minha camisa e o seu marido agarra em si e vamos entrar.". Enquanto percorremos o túnel, completamente às escuras, explica-nos que eram passagens usadas entre diferentes áreas, sendo que o local onde tínhamos estado antes, seria uma área de acesso reservado aos sacerdotes.

A Ana a confirmar a qualidade da construção dos túneis de Saqsaywaman


Chegamos a um novo espaço aberto e depois mais um túnel. -"Este é pequeno. Não chegamos a ficar às escuras.". Em poucos segundos estamos fora e contemplamos aquilo que parece ser um anfiteatro. Trata-se do Qocha, o templo principal do culto da água, um dos cultos mais importantes no tempo dos Incas, local onde tinham lugar as cerimónias fundamentais deste culto. Para lá deste espaço avistamos um grande afloramento rochoso que nos chama a atenção. José Luiz incita-nos a continuar na direcção dessa formação geológica.



O Qocha, o templo principal do culto da água.

Chegamos assim ao Suchuna ou Rodadero. Trata-se de uma formação de andesito, uma rocha assim chamada em alusão aos Andes, que se formou pela saída e solidificação de magma, o que explica as estrias que formam a mais peculiar característica deste bloco. As estrias mais compridas têm sido usadas desde há séculos como escorregas naturais e nós também não resistimos à tentação de experimentar aquilo que o cronista Inca Garcilaso de la Vega (1539-1616) referiu como sendo um dos passatempos predilectos das crianças de então.



As estrias extremamente polidas por séculos de utilização do Rodadero formam um fantástico escorrega natural. É obrigatório experimentar, à semelhança daquilo que o cidadão português da foto está valentemente a fazer.


Depois de atravessarmos o grande espaço aberto da esplanada Maskabamba, chegamos finalmente junto das "muralhas" em ziguezague. A dimensão dos blocos de andesito, alguns pesando centenas de toneladas, é assombrosa e a perfeição do encaixe das suas formas irregulares. Só a título de exemplo, o maior bloco do conjunto mede 9 metros de altura por 5 de largura e tem um peso estimado de 360 toneladas. Um feito! Mas atenção que este tipo de construção só era empregue em locais realmente importantes. Voltarei e este tema nos próximos artigos.



Um dos blocos gigantescos dos muros inferiores de Saqsaywaman. 




A única porta intacta do complexo: a Inti Punku ou Porta do Sol (do quechua Inti=Sol, Punku=Porta). Na arquitectura inca, a inclinação dos muros e as formas trapezoidais das portas e janelas não eram meramente estéticas, já que isso tornava as construções resistentes a sismos. 


Vista da esplanada Maskabamba, onde anualmente se realiza o Inti Raymi, a Festa do Sol. Esta cerimónia celebra o solstício de Inverno (21 de Junho) e recria a antiga cerimónia Inca que pedia aos deuses a dádiva de boas colheitas e bom governo. O que já não é recriado é o sacrifício de lamas (havia preferência por animais de cor preta).


Entrando na cidadela subimos ao ponto mais importante, o Muyuqmarka, onde se situava o templo do Sol. Aqui erguia-se também uma torre que, segundo os cronistas, teria 4 andares e estaria inteiramente revestida de ouro. Nela situava-se um reservatório de água, com capacidade estimada de quase 50.000 litros, saindo dele uma série de canais que levavam a água às diferentes partes de Saqsaywaman. Os espanhóis destruíram estas construções até aos alicerces.


Muyuqmarka (do quechua Muyuk=circular, Marka=local) onde se erguia uma grande torre de 4 andares, num complexo que incluía ainda o Templo do Sol. Este era o sector mais importante de Saqsaywaman.

Antes de entrarmos na cidadela, despedimos-nos de José Luiz, não sem quem este nos desse umas últimas indicações sobre o caminho a seguir para chegar a outros sítios que havia ali por perto: Qenqo, o Templo da Lua e Kusilluchayoc. O objectivo inicial era ir apenas ate Qenqo mas ficámos curiosos em relação aos dois últimos e decidimos por isso prolongar o percurso.

À saída das ruínas, encontrámos um dos responsáveis pela corte da relva do sítio arqueológico de Saqsaywaman: um Lama. Serviço ininterrupto barato e ecológico. 


Qenqo, o labirinto de pedra

Depois de nos termos abastecido com barrinhas de cereais artesanais numa das vendedoras em Saqsaywaman, seguimos por um caminho de terra batida até uma estrada, seguindo depois por esta até Qenqo. Antes de chegarmos a Qenqo, avistámos um conjunto de ruínas que nos chamou a atenção. Tratava-se do sítio conhecido como Qenqo Chico, o Qenqo Pequeno.

Sobre este local pouca ou nenhuma informação encontrámos para além do que vimos. O que resta de um grande muro, delimitando uma zona oval onde as construções há muito desapareceram, ficando apenas os  cortes nos afloramento rochoso, alguns nichos e escadarias.


Qenqo Chico, um misterioso sítio a partir do qual se tem uma vista privilegiada para as zonas mais recentes de Cusco, incluindo o estádio Garcilaso de la Vega


As escadarias e altares de Qenqo Chico

Logo ali ao lado, encontra-se Qenqo, este sítio sim, com muito mais para contar. Este era um santuário que já existia antes da chegada dos Incas e a cuja utilização estes deram continuidade. No maciço rochoso encontram-se inúmeros canais, escadarias e cavidades, que estariam associados ao conjunto de ritos religiosos nos quais era usada a Chicha, uma bebida sagrada feita de milho e que hoje, de forma menos sagrada, se pode provar um pouco por todo o lado. Basta encontrar uma casa que tenha uma bandeira ou pano vermelho pendurado no exterior e bater à porta.


O complexo religioso de Qenqo (em quechua, "Labirinto")

Em Qenqo, destaca-se uma área semelhante a um teatro. Embora pareça um espaço semi-circular com 19 cadeiras, na verdade existia aqui uma área delimitada por um muro algo com 19 nichos onde eram colocadas representações de diferentes divindades. A dominar o espaço está um monólito tosco, provavelmente desfigurado pelos espanhóis, que deveria ter a forma de um animal, um puma ou um macaco.


O "teatro" de Qenqo e o monólito zoomórfico. 


Outra perspectiva do "teatro", a partir do exterior.

Contornando o espaço, chegamos à entrada do espaço interior, feito de passagens sinuosas e salas mais ou menos largas. Neste espaço extremamente fresco encontra-se um grande altar sobre o qual se acredita que fossem feitos sacrifícios, tanto de humanos como de animais



A prática de sacrifícios era comum durante o Império mas era sobretudo praticada com animais. Os sacrifícios humanos eram apenas realizados em situações mais extremas, quando os deuses precisavam de ser apaziguados, ou em ocasiões de grande importância, como no solstício ou no equinócio, e para os que se ofereciam ao sacrifício, isso constituía uma grande honra.



O altar de sacrifícios no interior do santuário de Qenqo, um local sagrado que seria de acesso reservado a sacerdotes.


Terminada a nossa visita a Qenqo e dado que não sabíamos exactamente qual o caminho a seguir para chegarmos ao Templo da Lua e a Kusilluchayoc, perguntámos às duas senhoras que estavam no guichet de recepção qual era o caminho. Para o templo a sua resposta foi pronta mas foi algo caricato perceber que elas não sabiam exactamente onde se situava o segundo local. Após alguma reflexão uma delas pareceu finalmente lembrar-se onde ficava mas não se coibiu de emitir um aviso "Mas olhem que isso fica ali no meio da floresta e aquilo é um bocado perigoso. É melhor não irem lá.".

Optámos por ignorar o aviso e continuar o nosso caminho, dirigindo-nos ao Templo da Lua.


Templo da Lua e Kusilluchayoc, o "Templo dos Macacos"


A partir de Qenqo, o caminho de terra batida transforma-se num trilho algo irregular que corre ao longo de uma pradaria. Como em Qenqo, Templo da Lua foi construído ao redor e sobre um maciço rochoso destacado na paisagem, contendo também grutas que foram adaptadas e onde se encontram altares, provavelmente também para sacrifícios. As características das grutas sugerem uma conotação feminina do local, sendo possivelmente um local onde decorriam rituais relacionados com a fertilidade.

Chegados ao local, subimos ao topo do maciço para nos sentarmos e descansar um bocado, afinal, o calor apertava já tínhamos algumas horas de caminhada nas pernas. 


A caminho do templo da Lua.



As construções adjacentes ao maciço rochoso do templo da Lua, indiciando trabalhos de restauro.


Ao descermos, encontrámos um dos guardas que patrulham regularmente a zona arqueológica e aproveitámos para lhe perguntar o caminho até Kusilluchayoc. Com um sorriso largo, uma constante por aquelas bandas, indicou-nos um caminho que passava ali perto, delimitado por dois muros. -"É a estrada Inca. O templo dos macacos fica lá à frente, à beira dele".

Seguimos até ao caminho, passando por uma seara de quinoa, o "trigo dos Incas", em cuja colheita estavam várias pessoas a trabalhar. A cor ocre da seara destacava-se -e de que maneira!- no amarelo-baço da pradaria.



A colheita em curso na seara de quinoa, a mais de 3600m de altitude.



Qapac Ñan, a Estrada Real dos Incas aqui admiravelmente conservada


Chegando a Kusilluchayoc, o cenário repete-se: um maciço rochoso, estruturas anexas, vestígios sobre as rochas e cavidades com altares. Na parte central do conjunto, numa ampla abertura, agora a céu aberto, encontra-se um monólito, semelhante ao de Qenqo no qual se encontram em relevo várias figuras: uma que poderia realmente corresponder a um macaco e algumas serpentes. As serpentes, juntamente com os condores e os pumas, faziam parte da trilogia dos animais sagrados dos Incas, sendo vistas como animais capazes de comunicar entre diferentes planos de existência, longe da aura maléfica que lhe passou a ser atribuída com a chegada dos europeus.


As estruturas exteriores do templo aqui com um tipo de construção radicalmente diferente daquilo que se encontra em Saqsaywaman e no centro de Cusco, por exemplo.



O monólito com as serpentes e o macaco (não visível) que também neste sítio se encontra em lugar de destaque mas igualmente com sinais de ter sido vandalizado aquando da purga de idolatria posta em prática pelos espanhóis.

Após as visitas, era finalmente hora de regressar a Cusco para algum descanso antes do jantar. Sabíamos que, pela lógica, se continuássemos a seguir o caminho, inevitavelmente chegaríamos ao centro de Cusco mas não conhecíamos o estado do caminho nem sabíamos se este tinha continuidade para lá do que conseguíamos ver.

Um habitante local que por ali passava com uma criança aos ombros desfez as dúvidas, confirmando-nos o bom estado do caminho. Seguindo-o (dentro do possível dado que, apesar de transportar uma criança, tinha um ritmo de caminhada de fazer inveja), depressa chegámos à periferia de Cusco e, após alguns minutos, estávamos de volta a San Blas.


À chegada aos bairros periféricos de Cusco, o traçado da estrada inca muda radicalmente.


Cansados, é certo, mas fascinados com tudo o que tínhamos visto e também intrigados por não termos encontrado o menor indício dos perigos para os quais tínhamos sido avisados em Qenqo. Entretanto, o melhor ainda estava para vir.


A seguir: 

O Vale Sagrados dos Incas e as cidades que desafiam a imaginação e a gravidade

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