A trágica história do forte de Loncin


A entrada do forte de Loncin. A destruição das casamatas da entrada é apenas um prenúncio do que se encontra no interior.



Monumento aos mortos que ficaram sepultados no interior do forte.



A tranquilidade da paisagem que hoje rodeia as ruínas do forte de Loncin contrasta com a história pesada e trágica do local. Este forte, situado a cerca de 7km do centro de Liège, foi um dos 12 fortes  construídos em 1888 para formar a posição fortificada de Liège, formando um círculo de protecção ao redor da cidade (recordar aqui). 

Esta posição fortificada fazia parte da estratégia nacional belga, posta em prática após o conflito Franco-Prussiano de 1870, para assegurar a inviolabilidade do seu estatuto de neutralidade em caso de novo conflito entre os seus vizinhos.  Assim, a posição fortificada de Antuérpia fechava a entrada a tropas vindas de Inglaterra, a cintura de Namur trancava a fronteira com a França enquanto Liège dissuadia qualquer avanço vindo da Alemanha. 

Com o início da I Guerra Mundial a 28 de Julho de 1914, a Bélgica começou a preparar a sua defesa. À volta dos fortes e num raio de 600m, as sebes e as árvores foram cortadas e as casas foram destruídas, tudo com o objectivo de criar uma zona de total visibilidade que também não oferecesse abrigo ao inimigo. Linhas telefónicas foram entretanto colocadas entre os fortes e as torres de igreja mais próximas que iriam servir de postos de observação.  

A 2 de Agosto, alegando que a França se preparava para atravessar o território belga para a atacar, a Alemanha enviou um ultimato à Bélgica exigindo a autorização de passagem dos exércitos alemães para atacar a França. Perante a recusa do rei Alberto 1º, a Alemanha declarou então guerra à Bélgica e a invasão teve início a 4 de Agosto. 

A inesperada resistência belga, protagonizada pelos fortes, obrigou os alemães a triplicar as tropas envolvidas e a trazer a sua artilharia mais pesada a partir de 10 de Agosto. Foi aqui que as coisas se precipitaram. Um a um, os fortes belgas foram caindo. Construídos em betão simples, não armado, estavam preparados para resistir a obuses de até 210mm, os maiores conhecidos em 1888, mas não aos de 420mm que os novos canhões alemães, os famosos "Grande Bertha", conseguiam disparar. 

O obus de 420mm, em cima do seu cartucho. O projéctil de 800kg era disparado numa trajectória pronunciada que podia levá-lo a abater-se sobre o seu alvo após uma queda livre de 2km.

Por outro lado, havia erros de concepção nos fortes. Em caso de bombardeamento cerrado, as latrinas, cozinha, padaria e talho ficavam inacessíveis já que por questão de orçamento não tinha sido construído um acesso coberto as estas instalações situadas na contra-escarpa. Isto, juntamente com a falta de sistemas de ventilação (excepto em Loncin), fez com que o agravamento das condições sanitárias dentro dos fortes precipitasse a sua rendição.


O ataque ao forte de Loncin

Cúpula de artilharia de canhão duplo de 120mm

O forte de Loncin foi construído em forma de triângulo isósceles, com a base com 300m de comprimento. O corpo central do conjunto, a zona das torres de artilharia, estava rodeado por um fosso de 8 metros de largo e 4 de altura e na contra-escarpa do forte, em cada ângulo, possuía casamatas equipadas com canhões de 57mm para defesa de proximidade contra infantaria, tivesse o inimigo conseguido invadir o fosso. Para esse efeito, havia munições anti-infantaria, com projécteis cujo invólucro se desfazia após o disparo, libertando inúmeras esferas de chumbo que se espalhavam e varriam a infantaria inimiga. 


Maquete do forte de Loncin. É visível a forma triangular do forte e o seu maciço central em betão, com as cúpulas de artilharia. As de canhões de 57mm para defesa em proximidade e as de maior calibre para atingir objectivos a um máximo de 8,5km. Entre a entrada e a cúpula central de 150mm situava-se a posição do farol, capaz de iluminar a paisagem numa distância de até 3km. Imagem obtida aqui


Ângulo do fosso. Ao centro situa-se o corpo principal do forte, contendo casernas, paióis e posições de tiro. À direita, na contra-escarpa de entrada, situavam-se as instalações sanitárias, padaria, etc. 

Situado numa posição estratégica, controlando a estrada e o caminho-de-ferro que levavam a Bruxelas, o forte de Loncin era também um dos 6 maiores fortes de Liège e o mais avançado. Para além de ser comandado por um oficial por quem os soldados tinham uma admiração e obediência cegas, foi para aqui que o comando da posição fortificada de Liège se retirou nos primeiros dias da batalha. Loncin começou a ser atacado a partir do dia 7 de Agosto mas antes, o comandante do forte reuniu todos os seus 530 homens no fosso da entrada e fê-los jurar que se bateriam até ao último homem

O forte foi resistindo mas, com a queda dos outros fortes, começou a concentrar sobre si o grosso dos tiros da artilharia alemã. Tendo perdido todos os seus postos de observação e sem comunicação com o resto das forças belgas, o forte começou a sofrer aquele que viria a ser o bombardeamento final às 16h do dia 14 de Agosto e que despejaria sobre Loncin cerca de 15.000 obuses

Aos poucos, os soldados tiveram de se refugiar cada vez mais no interior do forte. Para piorar a situação, o gerador eléctrico avariou devido à obstrução da chaminé e, para além da falta de iluminação, a partir daí assegurada por modestos candeeiros de petróleo que se apagavam com as trepidações das explosões, o ar começou a tornar-se irrespirável. Em consequência disso, numa das casamatas de protecção do fosso, todos os soldados que aí operavam um canhão de 57mm morreram asfixiados após receberem ordens para não arredarem pé, perante a iminência do avanço da infantaria alemã. 


O interior da galeria principal do forte, onde os soldados se refugiaram à espera do ataque final alemão. Ao fundo, vê-se o início da secção que colapsou às 17h20 do dia 15 de Agosto.

Foi finalmente às 17h20, hora que ficou terrivelmente marcada na memória local, que um obus de 420mm, disparado a cerca de 8km de distância, trespassou a couraça já danificada do forte e se enfiou num dos paióis do forte, fazendo explodir as 12 toneladas de explosivos aí armazenadas. A explosão arrasou o forte, matando instantaneamente 350 homens e fazendo até saltar as cúpulas de artilharia do seu sítio. Os poucos soldados que conseguiram sair, concentraram-se no fosso, junto à casamata da cabeça, onde montaram uma última resistência até serem abatidos pela infantaria alemã que finalmente tinha avançado. 

O resultado da explosão do paiol. Neste local uma placa assinala o local de sepultamento de 250 soldados nunca recuperados.


O interior da casamata de protecção do fosso de entrada e o local onde o sub-oficial Albrecht e os seus homens morreram asfixiados pelos gases das explosões. A abertura inferior era aquela onde se encontrava o canhão de 57mm. A abertura superior destinava-se a permitir a entrada de ar mas não se previu que o ar exterior pudesse estar tão viciado. As fendas são o resultado da explosão do paiol.

Uma das cúpulas de artilharia de 210mm, a de maior calibre do forte, saltou do seu lugar devido ao sopro da explosão nas galerias do forte e ficou virada ao contrário. O que se vê na imagem é na verdade a estrutura interna da cúpula e a abertura por onde os obuses era carregados no canhão.

Os feridos que foram capturados e tratados pelos alemães, acabaram por receber destes um tratamento de profundo respeito, em reconhecimento pela forma valiosa como se tinham batido. O comandante das forças alemãs, por exemplo, fez questão de ir visitar o comandante do forte de Loncin ao hospital onde este recuperava dos ferimentos para o saudar.


O que resta

Actualmente o forte é gerido por uma associação sem fins lucrativos que aí organiza visitas guiadas. É esta associação que também gere o museu e adaptou as galerias não danificadas do forte para serem visitáveis. Tive ontem o privilégio de ser conduzido pelo Pierre, alguém que, conforme me confidenciou, começou por ser apenas um visitante do forte mas se sentiu de tal maneira ligado ao local que acabou por se tornar guia voluntário. Certo é que ao longo de mais de 2h30 me conseguiu manter interessado e até fascinado pelos relatos de todos os episódios que facilmente consegue situar no espaço do forte. 

O meu esmerado guia, diante da entrada do forte de Loncin que conserva ainda marcas bem visíveis do bombardeamento alemão. Atrás, na galeria de acesso, a protecção era reforçada por meio de uma ponte amovível que deslizava lateralmente, deixando aberto um fosso de 4m de profundidade.


A necrópole de Loncin, onde dezenas de soldados estão sepultados. Muitos deles tinham sido honrosamente enterrados pelos alemães num cemitério fora do forte, no preciso local onde hoje se situa o estacionamento dos visitantes.

O forte foi entretanto elevado a Necrópole Nacional e a casamata de cabeça do forte foi transformada em cripta, tendo aí sido inumados os restos mortais dos soldados entretanto encontrados, algo que ainda está longe de ter terminado uma vez que que, ainda em 2007, uma operação de desminagem levada a cabo pelo Exército permitiu retirar dos escombros não só 3500 obuses mas também os restos de 25 soldados, dos quais 4 foram identificados. Todos foram transferidos para a cripta. Muitos capítulos da história deste forte ainda estão em aberto.  

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